AGIOTAGEM
LEGALIZADA. LEI nº 10.280/2003 VIOLA o PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL da PROTEÇÃO ao SALÁRIO:
Por Garcia D´Ávila
Pires de Carvalho e Albuquerque. Professor de Processo Civil e Processo do
Trabalho da Universidade Cândido Mendes. (Publicada no Juris Síntese nº 53.
MAI/JUN de 2005).
“... O art.
462 da Consolidação das Leis do Trabalho consagrou o princípio da
intangibilidade do salário ao dispor que ao empregador é vedado efetuar
qualquer desconto nos salários dos empregados, salvo quando este resultar de
adiantamento, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo. Trata-se de
princípio universal, insculpido na Convenção nº 95, adotada na 32ª Sessão da
Conferência Internacional do Trabalho de 1944, incorporada formalmente ao
Direito Brasileiro em 1957.
Por
sua vez, ratificando a posição historicamente firmada pelo Brasil - e por quase
todos os países - no sentido de preservar a integralidade do salário dos
trabalhadores, a Constituição Federal, em seu art. 7º, inciso X, estatuiu que é
direito dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que se destinem à
melhoria de sua condição social, a proteção do salário na forma da lei,
constituindo crime a sua retenção dolosa.
Contudo
foi sancionada a Lei nº 10.820, de 17 de dezembro de 2.003, que faculta aos
empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho autorizar, de forma
irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento dos valores
referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos e operações de
arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de
arrendamento mercantil, quando previstos nos respectivos contratos.
A
fundamentação - na verdade o pretexto - que se utilizou para oferecer às
instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil a possibilidade
de descontar diretamente do salário - de forma absolutamente privilegiada -
parcelas provenientes de empréstimos celebrados por empregados regidos pela
Consolidação das Leis do Trabalho consistiu em que tal garantia permitiria aos
agentes financeiros estipular juros menores em relação aos praticados pelo
mercado.
Importante
registrar que os limites aos descontos fixados pelos incisos I e II do § 2º da
Lei nº 10.820, de 17 de dezembro de 2.003, muito embora atenuem os efeitos da
transgressão ao princípio da intangibilidade do salário, denunciam, por outro
lado, o constrangimento dos que outorgaram garantias diferenciadas às,
notoriamente, saudáveis instituições financeiras em detrimento dos interesses
do trabalhador e de sua família.
Com
efeito, não obstante a perspectiva oferecida ao empregado pela legislação
focalizada de obter empréstimos a juros menores, a realidade demonstra que o
obreiro, premido pela necessidade, contrai sucessivos empréstimos que em
virtude do sempre crescente aumento do custo de vida e de políticas salariais,
invariavelmente, restritivas não conseguirá honrar.
Vale
lembrar que a despeito de apresentarem índices menores do que os usualmente
estipulados pelo mercado, os juros correspondentes aos empréstimos autorizados
pela Lei nº 10.820, de 17 de dezembro de 2.003, oscilam entre 3% e 6% ao mês,
patamar muito acima do que o empregado ordinariamente aufere à guisa de aumento
salarial, o que nos permite concluir que, excetuando-se circunstâncias
especiais como o recebimento de herança ou sorte no jogo, o trabalhador jamais
reunirá condições para quitar o empréstimo contraído, cujas parcelas serão
descontadas diretamente do seu salário.
Por
outro lado, convém enfatizar que o salário representa a principal fonte de
receita da família, sendo certo que o seu comprometimento quase que integral,
antes mesmo de chegar ao destinatário natural, constitui fator de grave
insegurança social, pois alcança não só o empregado, como também o grupo
familiar por ele sustentado.
Portanto,
se havia algum vestígio de interesse social a justificar a sanção da lei
focalizada, a realidade incumbiu-se de dissipá-lo, remanescendo, apenas, o
interesse das instituições financeiras que, incontinenti, introduziram agentes
em órgãos públicos e entidades privadas para intermediar empréstimos com os
respectivos servidores e empregados públicos.
Surge,
assim, a nefasta figura do agiota legalizado que, sob o amparo da lei, negocia
empréstimos para instituições financeiras que, em visível afronta ao princípio
da proteção ao salário, usufruirão do doce privilégio de consignar os descontos
alusivos aos empréstimos na folha de pagamento dos empregados.
Cuida-se,
na verdade, de mais um passo na direção da total desregulamentação das relações
de trabalho, anseio indecoroso e indisfarçado de conhecidos segmentos da
sociedade que, obstinadamente, espreitam oportunidades para auferir lucros
ainda maiores.
Diante
do exposto, propugna-se pela retirada da Lei nº 10.820, de 17 de dezembro de
2.003, do sistema jurídico brasileiro, por absoluta incompatibilidade com o
princípio da proteção ao salário expresso nos arts. 7º, inciso X da
Constituição Federal e 462 da Consolidação das Leis do Trabalho. ...”.
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